Em 2002, o peso argentino se desvalorizou 60% em termos reais, transformando o país em uma autêntica fábrica de pobres
Que misterioso tesouro terá a indústria argentina que há mais de meio século não deixa de se proteger contra todo tipo de invasão importada? Será que o resto do mundo não compreende a maravilha inigualável que se esconde nas entranhas das fábricas argentinas, e que justifica que seus governos gerem tensões comerciais permanentes com outros países?
Durante a década de 1990, a Argentina tinha um regime de conversibilidade da sua moeda, já que uma lei federal garantia que cada peso circulante estava respaldado por um dólar, e a paridade era um a um. Naqueles tempos, a Argentina era tão cara em dólares que importava até as vassouras dos Estados Unidos e Europa, razão pela qual tinha grandes déficits comerciais com o primeiro mundo. No entanto, naqueles tempos de conversibilidade o país obteve importantes superávits comerciais com Brasil.
Mas, em 2002, o peso argentino se desvalorizou 60% em termos reais, transformando o país em uma autêntica fábrica de pobres. E, a partir desse momento, a única nação do planeta da qual podíamos comprar era (e continua sendo) o nosso vizinho Brasil. Por essa razão, na atualidade a Argentina tem grandes déficits no seu comércio exterior com o Brasil e superávits com os Estados Unidos e a Europa. Uma situação inversa à da década de 1990.
A economia mudou, mas o espírito contestatório dos industriais argentinos contra os produtos importados se mantém idêntico. Antes se queixavam da invasão importada proveniente do país do Tio Sam e do Velho Continente. Hoje choram amargamente pela "depredação" que sofrem nas mãos do seu irmão maior do Mercosul. Na verdade, seu lamento os ajudou a obter diversas medidas protecionistas contra as importações.
No mês passado industriais argentinos rejeitaram a possibilidade de o Brasil recorrer à Organização Mundial do Comércio (OMC) ou a cotas de exportação para se defender de medidas protecionistas no comércio bilateral. Segundo a União Industrial Argentina, o Brasil faz "reclamações injustas", pois "traz nas costas uma história de mais de 30 anos de proteção da produção, junto com financiamento a taxas subsidiadas por parte de seu Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), inclusive para compra de empresas argentinas".
O espírito protecionista dos empresários argentinos fez também com que a primeira reunião entre empresários argentinos e brasileiros para autorregular o comércio, levada a cabo no dia 25 de março, em Buenos Aires, fosse um absoluto fracasso. Do encontro participaram produtores de móveis de madeira, autopeças como baterias, freios e embreagens, vinhos e denim [jeans], considerados setores sensíveis pelos governos brasileiro e argentino.
No caso das baterias, os produtores argentinos propuseram aos seus pares brasileiros reduzir a cota de exportação à Argentina em 60%, para passar de 1,5 milhões de unidades a apenas 600 mil. No caso do denim, o desejo dos fabricantes argentinos foi uma limitação de 100%. No caso das autopeças, 30% menos. A negativa brasileira era previsível.
O governo de Cristina Kirchner está fechando a economia, as importações já caíram 30%, mantém-se a fuga de capitais e a queda do consumo interno. O Brasil não deve ter dúvidas de que a Argentina seguirá fechando sua economia ao comércio todos os dias e não se amedrontará com a existência do Mercosul.
A Argentina adotou a proteção de sua indústria como filosofia no começo da década de 1950. Nesse momento, seus governantes pensavam que a deterioração secular dos termos de intercâmbio era a causa de as economias em desenvolvimento terem caído em "dependência" com relação ao primeiro mundo, convertendo-se apenas em produtores de matérias-primas. E acreditavam, como ainda acredita a presidente Kirchner e o marido dela, que para os nossos países entrarem em um caminho de desenvolvimento sustentável será necessário promover a substituição de importações.
Hoje o protecionismo argentino à indústria continua com os impostos (retenções) às exportações agropecuárias, inclusive com proibições para exportar. E quando não há razões legais, o governo impede que as empresas exportem com liberdade, fechando os registros oficiais de exportação. Tudo para baratear os alimentos e os produtos manufaturados, para que os salários reais se mantenham altos e a indústria local possa ganhar muito dinheiro e se desenvolver com o mínimo esforço.
Não por acaso, nas últimas semanas o fluxo comercial entre o Brasil e a Argentina teve uma forte queda. O Brasil é o principal parceiro comercial da Argentina, mas o governo da presidente Kirchner aplicou uma série de barreiras à entrada de uma enorme lista de produtos importados (eletrodomésticos, eletroeletrônicos, calçados, tecidos, confecções, autopeças, aço e vidros), o que afeta 15% do comércio entre os dois países.
A ilusão kirchnerista, e de grande parte da nossa classe política, é blindar à Argentina da ameaça da concorrência com os importados.
Além disso, o governo da presidente Cristina Kirchner tenta proteger as reservas do seu Banco Central com métodos pouco ortodoxos: adverte as subsidiárias argentinas de empresas multinacionais (brasileiras inclusas) que demorem a comprar no mercado os dólares necessários para enviar as utilidades a suas casas matrizes.
Cuidar das reservas do Banco Central com pressões informais, proteger a indústria até brigar com o seu parceiro brasileiro, mentir com as estatísticas do país e tensionar ao máximo a sociedade, são todos os rasgos distintivos da política da presidente Kirchner e do marido e assessor dela, Néstor Kirchner.
Se o Brasil tivesse previsto esse comportamento quinze anos atrás, quando o Mercosul apenas começava, quem sabe não teria se interessado em comprometer-se com um sócio tão conflitivo.