A renegociação da dívida pública argentina, concluída no mês passado,
praticamente encerra o trágico fim da história da conversibilidade cambial,
regime que atrelou a moeda nacional ao dólar durante dez anos e terminou
com um default de US$ 144 bilhões, em dezembro de 2001. Contudo, o swap
não é suficiente para devolver à Argentina seu passaporte de entrada ao
mercado voluntário de dívida com taxas abaixo de um dígito, como sonha a
Presidente Cristina Kirchner. Antes de empreender o caminho de regresso ao
mercado internacional, a Casa Rosada tem que remover um obstáculo
espinhoso: a ausência de transparência nos índices de inflação.
"Vamos dizer isso sempre: enquanto não resolver o problema do Indec –
(Instituto Nacional de Estatísticas e Censos, o IBGE argentino) -, a Argentina
não vai normalizar suas relações com os mercados", afirmou à Agência
Estado o analista da consultoria Delphos Investiment, Leonardo Chialva. Ele
explica que a trajetória descendente dos bônus argentinos teve início
exatamente um mês depois que os investidores começaram a suspeitar das
estatísticas do Indec. "Trata-se de dados da realidade: a taxa de risco país
disparou quando o mercado intuiu que as informações do Indec estavam
enviesadas", disse ele.
Só para relembrar: em janeiro de 2007, ano das eleições presidenciais que
elegeram Cristina para suceder seu marido, Néstor Kirchner ( que governou o
país entre 2003 e 2007 e ainda é considerado o real poder no governo da
mulher), os números oficiais começaram a distanciar-se cada vez mais das
estimativas dos consultores. Chialva garante que o mercado reagiria de
maneira muito favorável à Argentina se houvesse uma transparência nos
índices, apesar de o país ainda manter uma dívida em default com o Clube de
Paris e um grupo remanescente de credores que brigam na Justiça contra o
default de 2001.
O BARATO QUE SAI CARO
O analista Leonardo Chialva, da consultoria Delphos Investiment, pondera que
em 2007 o risco país da Argentina era similar ao do Brasil. Naquela época, o
país tinha US$ 20 bilhões de dívida em mãos dos holdouts (os credores que
não aceitaram a reestruturação de 2005) e outros US$ 6,5 bilhões de débito
com o Clube de Paris. Mas não havia nenhuma suspeita pairando sobre as
cifras oficiais. Agora, os que insistem em receber a dívida remanescente nos
tribunais detêm apenas 8% dos títulos em default (US$ 6 bilhões) e ainda não
há sinais de uma negociação entre o governo e o Clube de Paris. Ele avalia,
entretanto, que essas são pedras pequenas que não chegam a fazer sombra
aos números.
"Nenhuma destas pedras tem o peso das suspeitas sobre as estatísticas",
sentencia Chialva, afirmando que a suposta manipulação oficial nas cifras
gera uma economia de US$ 500 milhões anuais aos cofres do Tesouro
argentino. É o típico caso do barato que sai caro. Um IPC oficial abaixo do
real leva o governo a pagar aos investidores rendimentos menores pelos
títulos atrelados ao indexador CER. Na avaliação dos investidores, com estes
US$ 500 milhões a mais que o governo gastaria para "consertar" o Indec, teria
a possibilidade de obter crédito com taxas abaixo de um dígito em condições
próximas às concedidas pelos mercados ao Brasil.
A calculadora não mente. Um Boden 2015, que é o título soberano de
referência, testou o máximo de rendimento de quase 15,5% no dia 25 de
maio, quando havia fortes dúvidas sobre o nível de aceitação do swap. Após o
resultado da operação, que obteve 66% de aceitação por parte dos holdouts,
o papel passou a pagar 12%. Não tão longe do sonhado porcentual de um
dígito, mas distante de um cenário propício para atingi-lo.
Apesar dos obstáculos ao objetivo oficial, os juros dos títulos com prazos mais
curtos recuaram para abaixo da casa dos 10%. O Bonar 5, por exemplo, com
vencimento em março de 2011, rendia 13% antes do swap e hoje rende 7%.
Essa melhora, contudo, é muito relativa. Um título soberano brasileiro com
igual prazo de vencimento exibe juros de apenas 0,9%. "Falta muito para a
Argentina emitir como o Brasil", lamenta Chialva.
NÃO É SOLVÊNCIA, É CREDIBILIDADE, ESTÚPIDO!
O diagnóstico que Chialva, da Delphos Investiment, faz da situação argentina
é voz uníssona entre os analistas. Eles consideram que a Argentina não tem
um problema de dívida, mas sim de falta de credibilidade e transparência a
partir do episódio Indec. As agências de risco têm sido categóricas em
relação ao assunto. A Standard & Poor’s é especialmente dura com a
Argentina. "A renegociação do swap foi positiva, mas não a ponto de acionar
uma mudança na qualificação da dívida", sentenciou o analista de risco
soberano de países emergentes, Sebastián Briozzo.
Ele recordou à AE que "entre 2006 e 2007, a Argentina não havia negociado
com os holdouts, tampouco com o Clube de Paris, mas a qualificação para a
dívida era B+ (dois níveis acima do atual). E permaneceu assim até ocorrer a
intervenção do governo no Indec". O IPC de 2010 está projetado entre 25% e
30% pelas contas de diferentes consultorias privadas. Para o governo, no
entanto, os preços no país devem acumular alta de apenas 10%.
A Moody’s, por sua vez, deixa aberta a possibilidade de melhorar a
classificação da dívida argentina e avalia que o swap foi uma demonstração
de "boa vontade" do governo. "Estamos avaliando se isso pode implicar em
uma mudança do rating", que poderia passar para B2, tanto que a agência já
elevou a perspectiva do país para positiva, destacou o analista de risco
soberano da agência, Gabriel Torres. A classificação da Moody’s para a
dívida argentina é ‘B3’, três escalas abaixo do limite que separa os países
com grau de investimento e em uma faixa usada para aqueles que
apresentam risco de default.
Embora descarte um default argentino e reconheça como bons os números do
país, o rating ainda não melhorou após o swap por causa do Indec.
"Entendemos que os números da Argentina justificam uma qualificação mais
elevada de sua dívida, mas a situação do Indec é preocupante não só porque
não se pode confiar nas estatísticas oficiais, mas porque boa parte da dívida
em pesos estava indexada", disse Torres.
APROPRIAÇÃO DE RESERVAS E FUGA DE CAPITAIS AO MESMO TEMPO
O Indec não é a única pedra no caminho do retorno da Argentina ao mercado
internacional. Os investidores questionam outras medidas polêmicas da
política econômica de Cristina Kirchner, como a estatização dos fundos de
pensão privados ou a transferência de reservas internacionais depositadas no
Banco Central para o caixa do Tesouro com o fim de financiar o gasto público.
O Ministério da Economia informou que já usou US$ 2,5 bilhões de um total de
US$ 6,6 bilhões das reservas que pretende gastar neste ano, conforme
decreto aprovado.
"Com o ritmo extravagante do gasto público e sem acesso ao crédito, o
governo vai ter que usar cerca de 50% a mais das reservas em 2011. E isso
poderia deixar os depositantes nervosos", advertiu o economista Jose Luis
Espert, da consultoria homônima, indicando uma acentuação na fuga de
capitais. Um levantamento realizado pela consultoria Ecolatina apontou para o
aumento no ritmo da formação de ativos externos do setor privado. Segundo o
estudo, o compasso da fuga de capitais aumentou, em média, de US$ 300
milhões entre janeiro de 2003 e março de 2008 para US$ 1,5 bilhão por mês
entre abril de 2008 e junho de 2010.
Na última quinta-feira, véspera do feriado nacional pelo dia da Independência
da Argentina, o Banco Central informou que atingiu o recorde histórico no nível
de reservas internacionais ao acumular US$
50,162 bilhões. O maior volume anterior das reservas foi registrado em março
de 2008, de US$ 50 bilhões. Desde o menor volume registrado em janeiro de
2003, de apenas US$ 8,2 bilhões, os ativos internacionais do BC cresceram
mais de seis vezes. O estudo da Ecolatina mostra que a recomposição das
reservas não foi somente nominal. Em relação ao PIB, as reservas cresceram
de 8,5% para 18,5%. No entanto, o estudo recorda que o atual estoque é
similar ao de dois anos atrás e que a interrupção no processo de acumulação
não se deveu a uma entrada menor de dólares no país, mas sim a um aumento
de saída da moeda.
ANO ELEITORAL DEVE SUSTENTAR DETERIORAÇÃO FISCAL
A advertência do economista Jose Luis Espert, no entanto, chama a atenção
para o forte crescimento das importações. Somente em maio, na comparação
com igual período de 2009, houve um aumento de 72% das importações ante
uma expansão de 25% das exportações. "A Argentina não vai ter déficit
comercial, mas pode entrar em déficit de conta corrente por causa do aumento
das importações", alertou Espert.
O economista ressalta ainda que o déficit fiscal do Estado é de 1,9% do PIB e
o consolidado (incluindo as Províncias) atinge 2,9%. Segundo ele, os gastos
com a amortização da dívida pública representam 1,5% do PIB. Diante desses
números, Espert opina que é conveniente ao governo criar condições para
emitir dívida mais barata. No entanto, essa hipótese é de difícil concretização,
avalia.
"É preciso olhar as ações: o governo mente com suas estatísticas, tentou
conseguir US$ 10 milhões por meio da elevação dos impostos de
exportações agrícolas em março de 2008, poucos meses depois se apropriou
dos fundos de pensão e depois levou um pouco das reservas. Não se pode
falar em superávit fiscal quando as medidas são de apropriação", criticou.
Para o analista, a deterioração fiscal vai continuar em 2011, especialmente
por causa das eleições presidenciais de outubro do próximo ano.
Se os mercados veem com maus olhos tais medidas, são com elas que o
governo seduz o chamado voto peronista, caracterizado pelo eleitorado de
classes menos favorecidas e com pouca instrução. Embora a dívida não seja
um tema quente para as eleições, já que estas serão marcadas por uma
inflação elevada e a falta de um programa para interromper a escalada de
preços, o governo tenta capitalizar o assunto.
SOBERANIA OU TEIMOSIA?
Em sua campanha oficial, o governo argentino afirma que Néstor iniciou o
processo de normalização da dívida soberana do país e que Cristina o
concluiu. De fato, quando os Kirchner chegaram ao poder, a dívida
representava 56% do PIB e hoje essa relação baixou para 30%, segundo o
analista Ramiro Castiñera, da consultoria Econométrica. "A renegociação foi
feita em condições favoráveis para evitar que o peso da dívida se transforme
em uma mochila que pese sobre o crescimento da economia", opinou.
O governo, contudo, não consegue capitalizar a notável situação da dívida
entre o eleitorado de melhor poder aquisitivo e os investidores por causa de
outros problemas. Além do sempre presente Indec, ele enumera: "A falta de
superávit primário, de um programa antiinflacionário, de credibilidade nas
estadísticas públicas, de uma renegociação com o Clube de Paris, além do
artigo IV do FMI, assim como apoiar um programa financeiro somente no uso
das reservas e no imposto inflacionário é o que explica, em boa medida, o fato
de o risco país estar em 775 pontos-base, enquanto o do Brasil se encontra
em 237".
A questão do Clube de Paris é apontada pelos analistas como um capricho do
casal Kirchner. Em outubro de 2008, Cristina anunciou o pagamento da dívida
de US$ 6,5 bilhões ao Clube com recursos das reservas. Duas semanas
depois houve a falência do Lehman Brothers, que detonou a crise
internacional. O cenário obrigou a suspensão da ideia. Em épocas de cautela,
os Kirchner optaram por uma reestruturação dessa dívida, mas essa via está
praticamente descartada porque implica em um acordo com o FMI que, por
sua vez, obriga o país a submeter-se a uma vistoria de suas contas.
A auditoria está prevista pelo artigo mencionado por Castiñera, que
estabelece o envio de missões técnicas aos países sócios para checar as
contas na ponta do lápis. São essas auditorias que permitem a elaboração do
documento anual do organismo multilateral sobre as economias de seus
integrantes. Só que os Kirchner não autorizam o desembarque de uma missão
na Argentina e propõem pagar a dívida direta e individualmente a cada um
dos membros do Clube de Paris. A metodologia não está prevista em nenhum
dos organismos: ou o devedor paga em cash ao Clube ou refinancia mediante
um acordo com o FMI. Mais uma pedra, portanto, que não sairá do caminho
da Argentina com a conclusão do recente swap de dívida.
(*) Marina Guimarães é jornalista e atua como correspondente da Agência
Estado em Buenos Aires, na Argentina.