As viagens internacionais, os discursos inflamados e as frases irônicas de Domingo Cavallo parecem não convencer mais ninguém. O mesmo vale para as medidas econômicas do ministro. Ao
menos foi o que se viu na semana passada, quando Cavallo pôde testar a sua mais recente cartada, a cotação diferenciada do peso em relação ao dólar, válida exclusivamente como referência para exportações e importações. Na prática, significou, nas transações de comércio exterior, desvalorizar o peso em 8%.
Anunciada na noite da sexta-feira 15, às vésperas de um fim de semana prolongado na Argentina, a medida abalou o principal pilar da economia do país, a paridade do peso em relação ao dólar na base de um para um, criada pelo próprio Cavallo em 1991, no primeiro mandato de Menem. Para as demais transações, continua valendo o esquema de um para um, o que, na Argentina de hoje, faz toda a diferença. Com 70% da economia dolarizada, uma mudança radical no câmbio poderá provocar uma quebradeira generalizada.
Anarquia – No front interno, a reação à política econômica de Cavallo foi mais violenta do que nunca e resultou na morte de manifestantes em confronto com a polícia, na província de Salta, na região norte do país. Em Buenos Aires, também ocorreram protestos e a repressão policial foi igualmente pesada. A onda crescente de manifestações dá margem à especulação de que o presidente Fernando de La Rúa não conseguirá chegar ao fim do mandato, embora ainda faltem dois anos e meio para as próximas eleições. "Estamos entrando em um período pré-anárquico", resumiu o ex-governador da província de Buenos Aires, a mais importante do país, Eduardo Duhalde, em entrevista ao jornal argentino Página 12.
Os investidores estrangeiros, desconfiados, preferiram manter o distanciamento. O principal termômetro da credibilidade argentina no mercado internacional, o índice que acompanha o chamado risco-país, continuou nas alturas, fechando em 971 pontos na quinta-feira 21. Significa que o governo argentino teria de pagar, no mínimo, 9,71% ao ano acima das taxas pagas pelos títulos do governo americano de mesmo prazo, tidos como o investimento mais seguro disponível no mercado, caso decida pedir emprestado no exterior.
O saldo positivo da medida ficou restrito ao campo da retórica, como apontaram alguns críticos da política econômica de Cavallo. Foi o primeiro reconhecimento aberto do governo de que a origem da crise argentina é a sobrevalorização do peso. "A pesar de se tratar de uma política travesti,
Cavallo está sinalizando que pretende mudar a política cambial para corrigir o balanço de pagamento. Isso é bom, mas é só o início do jogo", diz o professor da Universidade Federal do
Rio de Janeiro (UFRJ), Reinaldo Gonçalves. Na avaliação do economista, a situação ficará insustentável caso o país não mexa na sua política comercial. "Se mantiver o atual grau de abertura às importações, esse esquema gradual não resolverá nada. Precisa aumentar os impostos para importações e, ainda assim, renegociar novamente a dívida do governo", afirma Gonçalves.
O economista Paulo Nogueira Batista Junior, igualmente crítico de Cavallo, também recebeu bem a medida, ainda que reconheça suas limitações. "A desvalorização não é, por si mesma, suficiente para resolver os problemas argentinos. Mas o fundamental é derrubar o totem erigido pelo próprio Cavallo de que a rígida ligação com o dólar é intocável", escreveu o economista em um artigo publicado pela Folha de S.Paulo.
Expectativa – Menos otimista, o economista argentino Jose Luis Espert considera que, na melhor das hipóteses, a medida servirá para "congelar" o risco-país no nível elevado em que se encontra.
"Minha expectativa não é nada boa. Essa mexida no câmbio é confusa e acredito que a chance de a Argentina sair da recessão neste ano é zero", afirmou o economista a ISTOÉ. Espert considera
"ruim" haver dois câmbios. "Haverá superfaturamento das exportações e subfaturamento das importações.
Além disso, a medida perderá o efeito de impulsionar as exportações caso o euro se valorize, o que é bem provável que ocorra", diz ele. O mayor problema do país, para o economista, é o rombo das contas públicas. O déficit público mensal é de US$ 1,3 bilhão ao mês, o que representa 6% do Produto Interno Bruto (PIB), um índice elevado para os padrões internacionais. Reconhecido o problema cambial, o maior risco é uma corrida dos correntistas aos bancos, interesados em trocar seus depósitos em peso por dólares, antes que a desvalorização ocorra de vez. "Uma desvalorização descontrolada seria o caos", resume o economista argentino.